Em síntese: Georges Huber,
jornalista católico francês, disserta sobre o demônio e sua ação no
mundo. Ao mesmo tempo em que afirma a realidade dos anjos maus, enfatiza
estarem eles subordinados aos sábios desígnios da Providência Divina; o
demônio pode ladrar, mas só morde a quem se lhe chega perto. O autor
segue fielmente a doutrina da Igreja numa época em que se contesta o
artigo de fé relativo aos anjos bons e maus.
Georges Huber é jornalista católico
francês que se tem dedicado a escrever sobre os anjos. Após publicar
duas obras sobre os anjos bons e seu ministério junto aos homens,
oferece aos leitores um livro sobre o demônio e sua atualidade, seguindo
fielmente as linhas da Tradição e do magistério da Igreja’. A obra é
apresentada pelo Cardeal Christopher Schoenborn, Arcebispo de Viena e um
dos teólogos redatores do Catecismo da Igreja Católica. Este mestre bem
sintetiza o conteúdo da obra em foco nos seguintes termos:
“O autor mostrou na sua obra sobre os
anjos como estas esplêndidas criaturas espirituais estão totalmente às
ordens da Divina Providência e como todo o seu ser consiste na adoração e
no serviço de Deus. Esta mesma verdade encontra-se neste livro sobre
Satanás. Porque os anjos caídos continuam a ser anjos; continuam a ser
espíritos ao serviço de Deus, embora a contragosto.
A presente obra não suscita em nós medo
aos demônios; antes revela a fé no irresistível poder de Deus, que
ordena cada coisa para os seus fins. É o que a fé nos ensina e a
experiência cristã nos confirma, Os demônios empreendem uma luta
impiedosa contra o homem e se esforçam por obstruir os planos de Deus:
percorrem o mundo incessantemente a fim de levar as almas à perdição. No
entanto, a sua ação está completamente subordinada aos planos de Deus.
A partir desta verdade fundamental,
Georges Huber demonstra-nos que, se Deus permite que os demônios atuem,
não é certamente para fazer mal aos homens, mas para ajudá-lo a realizar
os seus magníficos planos de salvação”.
Após esta sucinta apresentação da obra, sejam destacados alguns dos tópicos mais significativos da mesma.
1. A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO
Como se pôde chegar a esta situação?
É a pergunta que fazia o Papa Paulo
VI, alguns anos depois de se ter encerrado o Concílio Vaticano II, à
vista dos acontecimentos que sacudiam a Igreja. ‘Pensava-se que, depois
do Concílio, o sol brilharia sobre a história da Igreja. Mas, em vez do
sol, apareceram as nuvens, a tempestade, as trevas, a incerteza’.
Sim, como se pôde chegar a semelhante situação?
A resposta de Paulo VI é clara e nítida:
‘Interveio uma potência hostil. Seu nome é o demônio, esse ser
misterioso de quem nos fala São Pedro na sua primeira Epístola. Quantas
vezes não se refere Cristo, no Evangelho, a este inimigo dos homens? E o
Papa precisa: ‘Nós cremos que um ser preternatural veio ao mundo
precisamente para perturbar a paz, para afogar os frutos do Concílio
ecumênico e para impedir a Igreja de cantar a sua alegria por ter
retomado plena consciência de si própria’. Para dizê-lo brevemente, o
Papa tinha a sensação de que ‘o fumo de Satanás entrou por alguma fenda
no templo de Deus’.
Assim se exprimia Paulo VI sobre a
crise da Igreja em 29 de junho de 1972, nono aniversário do seu
pontificado. Alguns jornais mostraram-se surpreendidos com essa
declaração do Papa sobre a presença de Satanás na Igreja. Outros
escandalizaram-se. Não estaria Paulo Vi exumando crenças medievais que
se julgavam esquecidas para sempre?
1.1. Uma das grandes necessidades da Igreja contemporânea
Sem recuar perante essas críticas, o
Papa voltou a tratar do tema cinco meses mais tarde. E, longe de
contentar-se com reafirmar a verdade sobre esse ponto, consagrou uma
alocução inteira à presença ativa de Satanás na Igreja.
Logo de início, sublinhou a dimensão
universal do tema: ‘Quais são hoje – perguntava – as necessidades mais
importantes da Igreja? ‘A resposta foi clara: ‘Uma das maiores
necessidades da Igreja é a de de fender-se desse mal que designamos por
demônio’. A seguir, recordou a doutrina da Igreja sobre a presença, no
mundo, de ‘um ser vivente, espiritual, pervertido e perversor, realidade
terrível, misteriosa e temível’.
Depois, referindo-se a algumas
publicações recentes (numa das quais um professor de exegese convidava
os cristãos a ‘liquidar o diabo’), afirmou: ‘Separam-se do ensinamento
da Bíblia e da Igreja aqueles que se negam a reconhecer a existência do
diabo ou aqueles que o consideram um princípio autônomo que não tem,
como todas as criaturas, a sua origem em Deus; e também aqueles que o
explicam como uma pseudo-realidade, uma invenção do espírito para
personificar as causas desconhecidas dos nossos males’.
‘Nós sabemos – prosseguiu o Papa – que
este ser obscuro e perturbador existe verdadeiramente e atua sem
descanso com uma astúcia traidora. É o inimigo oculto que semeia o erro e
a desgraça na história da humanidade. É o sedutor pérfido e obstinado
que sabe insinuarse em nós através dos sentidos, da imaginação, da
concupiscência, da lógica utópica, das relações sociais desordenadas,
para introduzir nos nossos atos desvios muito nocivos que, no entanto,
parecem corresponder às nossas estruturas físicas ou psíquicas ou às
nossas aspirações profundas’.
Satanás sabe insinuar-se… para
introduzir.. Estas expressões não nos lembram a advertência de São Pedro
sobre o leão que ruge e ronda, buscando a quem devorar (cfr. lPe 5, 8)?
Para se apresentar, o diabo não fica à espera de que o convidem; antes,
impõe a sua presença com uma habilidade quase infinita.
O Papa evocou também o papel de Satanás
na vida de Cristo. Ao longo do seu ministério, Jesus qualificou três
vezes o diabo como príncipe deste mundo (Jo 12, 31; 14, 30; 16, 11), tão
grande é o seu poder sobre os homens.
Paulo VI empenhou-se em apontar os indícios reveladores da presença ativa do demônio no mundo.
1.2. Lacunas na Teologia e na Catequese
Na sua exposição, o Santo Padre tirou
uma conclusão prática que, para além dos milhares dos fiéis presentes na
vasta sala de audiências, se dirigia aos católicos do mundo inteiro: ‘A
propósito do demônio e da sua influência sobre os indivíduos, sobre as
comunidades, sobre sociedades inteiras, faz-se necessário retomar um
capítulo muito importante da doutrina católica ao qual hoje se presta
pouca atenção’.
Por outras palavras, a Cabeça da Igreja
afirma que a demonologia é um capítulo ‘muito importante’ da teologia
católica e que hoje em dia é excessivamente esquecido. Existe uma lacuna
no ensino da Teologia, na catequese e na pregação. E essa lacuna pede
que seja preenchida. Estamos perante ‘uma das maiores necessidades’ da
Igreja no momento presente.
Quem o teria previsto? A catequese de
Paulo VI sobre a existência e influência do demônio originou um
inesperado sentimento de revolta na imprensa. Mais uma vez, acusou-se a
Cabeça da Igreja ele retomar a crenças já ultrapassadas pela ciência. 0
diabo estava morto e enterrado! Raramente os jornais se haviam levantado
com uma veemência tão ácida contra o Soberano Pontífice.
1.3. O Inimigo Desmascarado
Faz-se necessário retomar o capítulo da
demonologia: este lema de Paulo VI teve uma espécie de precedente na
história do papado contemporâneo.
Era um dia de dezembro de 1884 ou de
janeiro de 1885, no Vaticano, na capela privada de Leão XIII. Depois de
ter celebrado a missa, o Papa, como de costume, assistiu a uma segunda
missa. Lá pelo fim, viram-no levantar a cabeça de repente e olhar
fixamente para o altar, acima do tabernáculo. 0 seu rosto empalideceu e
as suas feições tornaram-se tensas. Finda a missa, levantou-se e, ainda
sob os efeitos de uma intensa emoção, dirigiu-se para o seu quarto de
trabalho. Um dos prelados que o rodeavam perguntou-lhe:
- Santo Padre, sente-se cansado? Precisa de alguma coisa?
- Não – respondeu Leão XIII – não preciso de nada…
O Papa encerrou-se no seu escritório.
Meia-hora mais tarde, mandou chamar o Secretário da Congregação dos
Ritos. Estendeu-lhe um papel com um texto manuscrito e pediu-lhe que
mandasse imprimir e o enviasse aos bispos de todo o mundo.
Qual era o conteúdo desse papel? Uma
oração ao Arcanjo São Miguel, composta pelo próprio Papa. Uma oração que
os sacerdotes recitariam depois de cada missa rezada, ao pé do altar,
após a Salve Rainha já prescrita por Pio IX:
“São Miguel Arcanjo, defendei-nos no
combate, sede o nosso amparo contra a maldade e as ciladas do demônio.
Instante e humildemente vos pedimos que Deus impere sobre ele. E vós,
Príncipe da milícia celeste, com esse poder divino, precipitai no
inferno Satanás e os outros espírito malignos que vagueiam pelo mundo
para a perdição das almas.”
Leão XIII confidenciou mais tarde a um
dos seus secretários, mons. Rinaldo Angeli, que durante a missa tinha
visto uma nuvem de demônios que se lançavam contra a Cidade Eterna para
atacá-la. Daí a sua decisão de mobilizar São Miguel Arcanjo e as
milícias celestes para que defendessem a Igreja contra Satanás e os seus
exércitos, e, de modo particular, para que se resolvesse o que então se
chamava ‘a questão romana’ (pp. 8-13).
2. COMO UM CÃO PRESO POR UMA CORRENTE
2.1. Nunca sem Luz verde
É significativo que Deus estabeleça
cuidadosamente os limites dos poderes que concede a Satanás. Não lhe dá
uma ‘luz verde’ incondicional. Assim como o Criador põe limites ao fluxo
do mar enfurecido – Não irás mais longe [...], aqui se quebrará o
orgulho das tuas ondas (Jó 38, 11) -, do mesmo modo impõe limites ao
ódio e à inveja de Satanás.
O Evangelho de São Mateus revela-nos que
os demônios têm necessidade de luz verde’mesmo para uma operação sem
maiores consequências, ainda que insólita, como entrar num rebanho de
porcos que pastam na terra dos gerasenos. Havia a uma certa distância um
grande rebanho de porcos que pastava. E os demônios suplicaram a Jesus:
‘Se nos expulsas, envia-nos a esse rebanho de porcos’. Ide, disse-lhes
Jesus. Saíram então e foram para os porcos, e eis que, do alto da
escarpa, todo o rebanho se precipitou no mar, onde se afogou (Mt 8,
30-32).
O relato da Paixão apresenta-nos um
exemplo dramático dos limites impostos por Deus ao poder do diabo sobre
os Apóstolos. Satanás tinha pedido a Deus que o deixasse pôr à prova os
Apóstolos, sacudindo-os como o agricultor sacode o trigo. 0 Senhor só
aceita esse pedido em parte. Com explica Garrigou-Lagrange, ‘o Senhor
permitiu a Satanás que joeirasse os Apóstolos como se joeira o trigo,
mas pôs um limite. Quem Satanás desejava sobretudo fazer cair era Pedro,
o chefe dos Apóstolos. Jesus conhecia o perigo que ameaçava Pedro. Não
quis preservá-lo completamente, mas com a sua oração protegeu-lhe a fé: a
do Apóstolo, portanto, não desfalecerá, e, quando se recuperar da sua
conduta errônea, caber-lhe-á confirmar os seus irmãos’.
Garrigou-Lagrange cita a profunda observação de um exegeta protestante:
‘Preservando Pedro, cuja ruína teria arrastado os demais Apóstolos,
Jesus preservou-os a todos’. É assim que Deus, Senhor da História, sabe
utilizar a malícia de Satanás para a construção da Igreja.
São Tomás de Aquino insiste muito
neste ponto: o diabo não pode tentar os homens tanto quanto deseja; só
pode atormentá-los na medida em que Deus o permite. Nem mais, nem menos!
O relato da Paixão apresenta outro
exemplo da submissão do demônio às disposições da Providência. Depois de
ter dito que, na última Ceia, Satanás tinha entrado em Judas, São João
cita estas palavras de Jesus ao traidor: 0 que tens a fazer, faze-o
depressa! (Jo 13, 27). Podese expressar mais explicitamente o controle
de Deus sobre as maquinações de Satanás presente em Judas? É verdade,
como explicam os exegetas, que as palavras de Jesus não equivaleram a
uma ordem. Também não eram um estímulo à traição. Expressavam
simplesmente, numa linguagem rigorosa, uma autorização) (pp. 80s).
2.2. Pode ladrar, mas não morder
São Paulo assegura-nos: “Deus não
permitirá que sejais tentados além do vosso poder de resistência, mas,
junto com a tentação, dar-vos-á os meios para suportá-la e a força para
vencê-la” (1 Cor 10, 13).
Existem dois movimentos na raiz das
tentações do diabo: o amor de Deus pelos homens e a odienta inveja de
Satanás. Deus permite a tentação por amor, para dar à criatura humana a
oportunidade de elevar-se até Ele por atos de virtude; o demônio
desencadeia a tentação por ódio, para fazer cair o homem. Deus oferece
ao homem uma ocasião de subir e Satanás utiliza essa mesma ocasião para
fazê-lo cair. Assim, por uma misteriosa ordem de Deus, sem o saber, sem o
querer, contra a sua vontade e contra as inclinações de todo o seu ser,
Satanás contribui indireta, mas realmente, para a expansão do reino de
Deus sobre a terra. Não é esta, aliás, a razão da sua presença entre os
homens até o Juízo final, antes de ser precipitado nas profundezas do
inferno?…
A um sacerdote da Missão, a quem Satanás
tinha razões para odiar, São Vicente de Paulo escrevia: ‘O diabo pode
ladrar, mas não pode morder; pode atemorizar-vos, mas não vos pode fazer
mal. Isto eu vo-lo garanto diante de Deus, na presença de quem vos
falo’.
Também Santa Teresa de Lisieux se
servia dessa imagem para mostrar os limites do poder de Satanás:
comparava o demônio a um grande cão malvado que nada pode contra uma
criancinha subida aos ombros de seu pai.
A este respeito, pode ser útil recordar mais uma vez as seguintes verdades:
A primeira é que o poder do demônio,
embora grande, não é absoluto: nunca, nem sequer nos casos de possessão,
… ele tem acesso direto às potências propriamente espirituais do ser
humano, isto é, à inteligência e à vontade. Ou seja, não pode nunca, em
nenhuma hipótese, obrigar-nos a pecar. Só há pecado quando há
consentimento da vontade, isto é, quando o ‘eu’ decide ceder à tentação.
Nada, nem a duração nem a intensidade de uma tentação, pode Causar
diretamente – nem, por outro lado, ‘autorizar’ ou desculpar – o
consentimento.
A segunda é que é essencial saber que
sentir não é consentir. As imagens podem ser muito fortes ou vívidas, e
as emoções encontrarem se num estado de tumulto intenso, mas não há
pecado enquanto a vontade não disser “sim”. E isso sempre se sabe no
recôndito da consciência (N. do E), (pp. 82s).
3. EXORCISMO
O missivista, no caso, refere ter ouvido
dizer que a Igreja aboliu os exorcismos ou as preces feitas para
expulsar o Maligno detentor das faculdades de um ser humano. – Em
resposta nada de melhor se pode fazer do que citar o atual Código de
Direito Canônico, que, supondo a possibilidade de haver possessão
diabólica, regulamenta a prática do exorcismo:
Cânon 1172 – § 1. Ninguém pode
legitimamente fazer exorcismos em possessos a não ser que tenha obtido
licença especial e expressa do Ordinário local.
§ 2. Essa licença seja concedida pelo Ordinário local somente a
sacerdote que se distinga pela piedade, ciência, prudência e integridade
de vida.
Por conseguinte, a Igreja crê na
eventualidade da possessão diabólica. Apenas deseja que se examine
atentamente cada caso de pretensa possessão para não se confundir doença
psíquica ou física com a ação do Maligno. Uma vez diagnosticada, com
séria probabilidade, a possessão por sacerdotes e médicos, recorra-se ao
Bispo local ou ao Prelado respectivo para lhe pedir que delegue um
sacerdote exorcista.