Para ter noção do que são as indulgências na Igreja, devemos aprofundar sucessivamente quatro proposições doutrinárias, a saber:
1) Todo pecado acarreta a necessidade de expiação ou reparação.
2) Em vista da reparação, existe na
Igreja o tesouro infinito dos méritos de Cristo, que frutificou nos
méritos da Bem-aventurada Virgem Maria e dos demais Santos.
3) Cristo confiou à sua Igreja o poder das chaves para administrar tesouro da Redenção.
4) Fazendo uso deste poder, a Igreja, em
determinadas circunstâncias houve por bem aplicar os méritos de Cristo
aos penitentes dispostos a expiar os pecados.
Examinemos mais profundamente estas proposições.
Necessidade de expiação:
1) 0 amor a Deus, num cristão, pode
coexistir com tendências desregradas e pecados leves (ao menos,
sernideliberados). Há, sim, em todo indivíduo humano um lastro inato de
desordem: egoísmo, vaidade, amor próprio covardia, negligência, moleza,
infidelidade… Acham-se tão intimamente arraigados no interior do homem
que chegam por vezes a acompanhar as suas mais sérias tentativas de se
elevar a Deus e dar a Deus o lugar primacial que lhe toca na criatura. A
psicologia das profundidades sina que essas tendências nem sempre são
conscientes, mas muitas vezes atuam no nosso subconsciente ou no
inconsciente.
2) Mais: todo pecado (principalmente
quando grave, mas também alta leve) deixa na alma resquício de si ou uma
inclinação má (metaforicamente deixa uma cicatriz, deixa um pouco de
ferrugem na alma, dificultando-lhe a prática do bem). Com efeito; o
pecado implica sempre ia desordem. Quando, após o pecado (grave ou
leve), a pessoa se arrepende e pede perdão a Deus, o Pai do céu perdoa
(o Senhor nunca rejeita a contrição sincera). Mas o amor do pecador
arrependido, por mais genuíno e leal que seja, pode não ser suficiente
para extinguir todo resquício de amor desregrado, egoísta, existente na
alma. Em conseqüência o pecador arrependido recebe o perdão do seu
pecado, mas ainda deve libertar-se da desordem deixada pelo pecado em
sua alma; quantas vezes se verifica que, mesmo após uma confissão
sincera e contrita, o cristão recai nas faltas de que se arrependeu!
Isto se deve ao fato de que ficou no seu íntimo a raiz ou o princípio do
pecado.
Figuradamente, pode-se dizer que o
cristão arranca a folha e o caule da tiririca, mas dificilmente arranca
também o caroço ou a raiz da tiririca; esta se manifesta dentro em
pouco, através de novos pecados. Para extirpar o princípio do pecado
remanescente, o cristão deve excitar e exercitar mais intensamente o
amor a Deus. Ora este estímulo do amor a Deus se realiza mediante a
satisfação ou atos de penitência que despertem e fortaleçam o amor a
Deus no íntimo do cristão.
Notemos bem: a satisfação assim
entendida não deve ser comparada a uma multa mais ou menos arbitrária
imposta por Deus ou a um castigo vingativo; é, antes, um auxílio
medicinal; é também uma exigência do amor do cristão a Deus, amor que,
estando debilitado, pode ser corroborado e purificado.
Exprimindo estas verdades em termos
precisos, o Concílio de Trento em 1547, frente às objeções protestantes,
fez importantes declarações. Rejeitou, por exemplo, a sentença segundo a
qual “a todo pecador penitente que tenha recebido a graça da
justificação, é de tal modo perdoada a ofensa e desfeita e abolida a
obrigação de pena eterna que não lhe fica pena temporal a padecer ou
neste mundo ou no outro, no purgatório, antes que lhe possam ser abertas
as portas para o reino dos céus” (Enquirídio, DS nº 1580 [8401).
0 Concílio de Trento declarou ainda: No
tocante à satisfação, é de todo falso e alheio à Palavra de Deus afirmar
que a culpa nunca é perdoada. Com efeito, nas Escrituras Sagradas
encontram-se claros e famosos exemplos que refutam este erro com plena
evidência" (DS 1689-[904])
A culpa é perdoada, sim. Mas a Escritura
mostra que, mesmo depois de perdoada, o Senhor Deus exige satisfação ou
reparação da ordem violada pelo pecado. Esta exigência se compreende
muito bem se levamos em conta o seguinte: Quem rouba um relógio, pode
pedir e receber o perdão do respectivo proprietário, mas este exigirá
que a ordem seja restaurada ou que o relógio volte ao seu dono. Quem
difama caluniosamente o próximo, pode pedir e receber o perdão deste,
mas a pessoa difamada exigirá que se restaure a fama a que tem direito.
Também os pecados meramente internos (de
pensamento e desejo) alimentam ou suscitam a desordem interna no
pecador, de modo que este tem que restaurar ou introduzir a ordem em seu
íntimo mediante atos de penitência ou renúncia. Tenhamos em vista os
seguintes casos:
Davi, culpado de homicídio e adultério,
foi agraciado ao reconhecer o delito; não obstante, teve que sofrer a
pena de perder o filho do adultério (cf. 2Sm 12,13s).
Moisés e Aarão cederam a pouca fé em
dados momentos da sua vida; por isto foram pelo Senhor privados de
entrar na Terra Prometida, embora não haja dúvida de que a culpa lhes
tenha sido perdoada (cf. Nm 20,12s;27,12-14; Dt 34,4s).
Assim o profeta Joel, com a conversão do
coração, exige jejum e pranto (cf. Jl 2,12s). 0 velho Tobit ensina a
seu filho que a esmola o libertará de todo pecado e da morte eterna (cf.
Tb 4,11 s). Algo de semelhante é anunciado por Daniel ao rei
Nabucodonosor (cf. Dn 2,24).
3) Levemos em conta também que, mesmo
após haver recebido o perdão de seus pecados, o homem fica sendo
responsável pela desordem que o pecado geralmente acarreta para o
próximo e para o mundo. As palavras e as ações de um homem têm
freqüentemente dimensões muito mais amplas do que as do momento
presente; seus efeitos escapam às previsões e ao controle de quem as
produz. Não é raro que no decorrer de sua peregrinação terrestre o homem
deixe marcas de sua atividade que continuarão atuantes mesmo depois da
morte do respectivo sujeito.
Autor: Dom Estevão Bittencourt
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