Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais!
O mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, busca, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal. É aquilo que o Senhor censurava aos fariseus: «Como vos é possível acreditar, se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus único?» (Jo 5,44).
É uma maneira sutil de procurar «os próprios interesses, não os interesses de Jesus Cristo» (Fl 2,21). Reveste-se de muitas formas, de acordo com o tipo de pessoas e situações em que penetra. Por cultivar o cuidado da aparência, nem sempre suscita pecados de domínio público, pelo que externamente tudo parece correto. Mas, se invadisse a Igreja, «seria infinitamente mais desastroso do que qualquer outro mundanismo meramente moral».
Esse mundanismo pode alimentar-se sobretudo de duas maneiras profundamente relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo,
uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada
experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente
confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica
enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos.
A outra maneira é o neopelagianismo
autorreferencial e prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas
próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas
normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico
próprio do passado.
É uma suposta segurança doutrinal ou disciplinar que
dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de
evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o
acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos,
nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. São
manifestações dum imanentismo antropocêntrico. Não é possível imaginar
que, destas formas desvirtuadas do Cristianismo, possa brotar um
autêntico dinamismo evangelizador.
Esse obscuro mundanismo manifesta-se em
muitas atitudes, aparentemente opostas, mas com a mesma pretensão de
«dominar o espaço da Igreja». Em alguns, há um cuidado exibicionista da
liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que
o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas
necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja se
transforma numa peça de museu ou numa possessão de poucos.
Noutros, o
próprio mundanismo espiritual esconde-se por detrás do fascínio de poder
mostrar conquistas sociais e políticas, numa vanglória ligada à gestão
de assuntos práticos ou numa atração pelas dinâmicas de autoestima e de
realização autorreferencial. Também se pode traduzir em várias formas de
se apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia de
viagens, reuniões, jantares e recepções.
Ou então desdobra-se num
funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas, planificações e
avaliações, onde o principal beneficiário não é o povo de Deus, mas a
Igreja como organização. Em qualquer um dos casos, não traz o selo de
Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de
elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das
imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o
gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica.
Leia mais:
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.: A aridez espiritual pode ser um trampolim para a santidade?
.: As provações da Igreja
.: Papa Francisco pede a todos que se arrisquem
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Ser fiel
Nesse contexto, alimenta-se a vanglória
de quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de
exércitos derrotados antes que simples soldados dum batalhão que
continua a lutar. Quantas vezes sonhamos planos apostólicos
expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais
derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por
ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida
gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o
trabalho é “suor do nosso rosto”.
Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a
falar sobre «o que se deveria fazer» – o pecado do «deveriaqueísmo» –
como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções
ficando de fora. Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o
contato com a dolorosa realidade do nosso povo fiel.
Quem caiu nesse mundanismo olha de cima e
de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona,
faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela
aparência. Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte
fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente, não
aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. É
uma tremenda corrupção, com aparências de bem.
Devemos evitá-lo, pondo a
Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus
Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos livre de uma Igreja mundana sob
vestes espirituais ou pastorais! Este mundanismo asfixiante cura-se
saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos
centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa vazia de
Deus.
Não deixemos que nos roubem o Evangelho!
Parágrafos 93 – 97
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