“A oração hesicástica, que leva ao descanso em que a alma habita com Deus, é a oração do coração. Para nós que damos tanta importância à mente, aprender a rezar com o coração e a partir dele tem importância especial. Os monges do deserto nos mostram o caminho. Embora não exponham nenhuma teoria sobre a oração, suas narrativas e seus conselhos concretos apresentam as pedras com as quais os autores espirituais ortodoxos mais tardios construíram uma espiritualidade magnífica.
Os autores espirituais do monte Sinai,
do monte Atos e os startsi da Rússia oitocentista apóiam-se todos na
tradição do deserto. Encontramos a melhor formulação da oração do
coração nas palavras do místico russo Teófano, o Recluso: “Rezar é
descer com a mente ao coração e ali ficar diante da face do Senhor,
onipresente, onividente dentro de nós”.
No decorrer dos séculos, essa
perspectiva da oração tem sido central no hesicasmo Rezar é ficar na
presença de Deus com a mente no coração, isto é, naquele ponto de nossa
existência em que não há divisões nem distinções e onde somos totalmente
um. Ali habita o Espírito de Deus e ali acontece o grande encontro.
Ali, coração fala a coração, porque ali ficamos diante da face do
Senhor, onividente, dentro de nós.
É bom saber que aqui a palavra “coração”
é usada em seu sentido bíblico pleno. em nosso meio, ela se tornou
lugar-comum. Refere-se à sede da vida sentimental. Expressões como
“coração partido” e “sentido no coração” mostram ser comum pensarmos no
coração como o lugar quente onde se localizam as emoções, em contraste
com o frio intelecto onde têm lugar nossos pensamentos. Mas, na tradição
judeu-cristã, a palavra “coração” refere-se à fonte de todas as
energias físicas, emocionais, intelectuais, volitivas e morais.
No coração, originam-se impulsos
impenetráveis, além de sentimentos, disposições e desejos conscientes. O
coração também tem suas razões e é o centro da percepção e do
entendimento. Finalmente, ele é a sede da vontade: faz planos e chega a
uma boa decisão. Assim, é o órgão central e unificador de nossa vida
pessoal. Nosso coração determina nossa personalidade e é, portanto, não
só o lugar onde Deus habita mas também o lugar ao qual Satanás dirige
seus ataques mais ferozes. Esse coração é o lugar da oração. A oração do
coração dirige-se a Deus a partir do centro da pessoa e, assim, afeta
toda a nossa compaixão.
Um dos monges do deserto, Macário, o
Grande, diz: “A tarefa principal do atleta (isto é, do monge) é entrar
em seu coração”. Isso não significa que o monge deva procura encher sua
oração de sentimento; significa que deve esforçar-se para deixar que ela
remodele toda a sua pessoa. O discernimento mais profundo dos monges do
deserto é que entrar no coração é entrar no Reino de Deus. Em outras
palavras, o caminho para Deus é pelo coração. Isaac, o Sírio, escreve:
“Procure entrar na câmara do tesouro…
que está dentro de você e então descobrirá a câmara do tesouro do céu.
Pois ambas são a mesma coisa. Se conseguir entrar em uma, você verá
ambas. A escada para este Reino está escondida dentro de você, em sua
alma. Se você purificar a alma, ali verá os degraus da escada que deve
subir.”
E João de Cárpato diz: “É preciso grande
esforço e luta na oração para alcançar aquele estado da mente que é
livre de toda perturbação; é um céu dentro do coração (literalmente
‘intracardíaco’), o lugar onde, como o apóstolo Paulo assegura, “Cristo
está em vós” (2Cor13,5).
Em suas falas, os monges do deserto nos
indicam uma visão bastante holística de oração. Eles nos afastam de
nossas práticas intelectuais, nas quais Deus se transforma em um dos
muitos problemas com os quais temos de lidar. Mostram-nos que a
verdadeira oração penetra no âmago de nossa alma e não deixa nada sem
tocar. A oração do coração não nos permite limitar nosso relacionamento
com Deus a palavras interessantes ou emoções piedosas. Por sua própria
natureza, essa oração transforma todo o nosso ser em Cristo,
precisamente porque abre os olhos de nossa alma à verdade de nós mesmos e
também à verdade de Deus. Em nosso coração passamos a nos ver como
pecadores abraçados pela misericórdia de Deus. É essa visão que nos faz
clamar: “Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, tem misericórdia de
mim, pecador”. A oração do coração nos exorta a não esconder
absolutamente nada de Deus e a nos entregar incondicionalmente a sua
misericórdia.
Assim, a oração do coração é a oração da
verdade. Desmascara as muitas ilusões sobre nós mesmos e sobre Deus e
nos conduz ao verdadeiro relacionamento do pecador com o Deus
misericordioso. Essa verdade é o que nos dá o “descanso” do hesicasta.
Quando ela se abriga em nosso coração, somos menos distraídos por
pensamentos mundanos e nos voltamos mais sinceramente para o Senhor de
nossos corações e do universo. Assim, as palavras de Jesus: “Felizes os
corações puros: eles verão a Deus” (Mt 5,8) tornam-se reais em nossa
oração. As tentações e as lutas continuam até o fim de nossas vidas, mas
com um coração puro ficamos tranquilos, mesmo em meio a uma existência
agitada.
Isso levanta o problema de como praticar
a oração do coração em um ministério bastante agitado. É a essa questão
de disciplina para a qual precisamos agora voltar a atenção.
Oração e Ministério
Como nós, que não somos monges nem
vivemos no deserto, praticamos a oração do coração? Como ela influencia
nosso ministério cotidiano?
A resposta a essa pergunta está na
formulação de uma disciplina definitiva, uma regra de oração. Há três
características da oração do coração que nos ajudam a formular essa
disciplina:
A oração do coração alimenta-se de orações breves e simples.
A oração do coração é incessante.
A oração do coração inclui tudo.
Alimenta-se de Orações Breves
No contexto de nossa cultura verbosa, é
significativo ouvir os monges do deserto nos aconselhando a não usar
palavras em excesso:
“Perguntaram ao aba Macário: ‘Como se
deve rezar?’ O ancião respondeu: ‘Não há, em absoluto, necessidade de
fazer longos discursos; basta estender a mão e dizer: Senhor, como
queres e como sabes, tem misericórdia. E se o conflito ficar mais
ameaçador, dizer: Senhor, ajuda. Ele sabe muito bem do que precisamos e
nos mostra sua misericórdia’”.
São João Clímaco é ainda mais explícito:
“Quando rezar, não procure se expressar
em palavras extravagantes pois, quase sempre, são as frases simples e
repetitivas de uma criancinha que nosso Pai do céu acha mais
irresistíveis. Não se esforce em muito falar, para que a busca de
palavras não lhe distraia a mente da oração. Uma única frase nos lábios
do coletor de impostos foi suficiente para lhe alcançar a misericórdia
divina; um pedido humilde feito com fé foi suficiente para salvar o bom
ladrão. A tagarelice na oração sujeita a mente à fantasia e à
dissipação; por sua natureza, as palavras simples tendem a concentrar a
atenção. Quando encontrar satisfação ou contrição em determinada palavra
de sua oração, pare nesse ponto”.
Essa é uma sugestão muito útil para nós
que tanto dependemos da capacidade verbal. A tranquila repetição de uma
única palavra ajuda-nos a descer com a mente ao coração. Essa repetição
nada tem a ver com mágica. Não tem o propósito de enfeitiçar Deus, nem
de forçá-lo a nos ouvir. Pelo contrário, uma palavra ou sentença
repetida com freqüência ajuda-nos a nos concentrar, a nos mover para o
centro, a criar uma tranqüilidade interior e, assim, a ouvir a voz de
Deus. Quando simplesmente tentamos ficar sentados em silêncio e esperar
que Deus nos fale, nos vemos bombardeados por intermináveis pensamentos e
idéias conflitantes.
Mas quando usamos uma sentença bastante
simples como: “Ó Deus, vem em meus auxílio”, ou “Jesus, mestre, tem
piedade de mim”, ou uma palavra como “Senhor” ou “Jesus”, é mais fácil
deixar as muitas distrações passarem sem nos deixarmos iludir por elas.
Essa oração simples, repetida com facilidade, esvazia aos poucos nossa
vida interior apinhada e cria o espaço sossegado onde habitamos com
Deus. É como uma escada pela qual descemos ao coração e subimos a Deus.
Nossa escolha de palavras depende de nossas necessidades e das
circunstâncias do momento, mas é melhor usar palavras da Escritura.
(veja na página de Oração Centrante, como escolher a Palavra Sagrada).
Quando somos fiéis a essa oração simples
e a praticamos com regularidade, ela nos conduz devagar a uma
experiência de descanso e nos abre à presença ativa de Deus. Além disso,
em um dia muito atarefado, podemos levar essa oração conosco. Quando,
por exemplo, passamos, no início da manhã, 20 minutos sentados na
presença de Deus com as palavras: “O Senhor é meu pastor”, elas
lentamente constroem em nosso coração um pequeno ninho para si mesmas e
ali ficam o restante de nosso dia atarefado. Até enquanto falamos,
estudamos, cuidamos do jardim ou construímos alguma coisa, a oração
continua em nosso coração e nos mantém conscientes da orientação
onipresente de Deus. A disciplina não é agora dirigida para um
discernimento mais profundo do que significa chamar Deus de nosso
Pastor, mas para a íntima experiência da ação pastoral de Deus em tudo
que pensamos, dizemos ou fazemos.
Incessante
A segunda característica da oração do
coração é ser incessante. A pergunta de como seguir a ordem de Paulo:
“Orai incessantemente” foi fundamental no hesicasmo desde a época dos
monges do deserto até a Rússia oitocentista. Há muitos exemplos desse
interesse nos dois extremos da tradição hesicástica. (Vejamos um dos
principais:)
….
Na famosa história do Peregrino Russo lemos:
“Pela graça de Deus sou cristão, mas
pelas minhas ações sou um grande pecador… No vigésimo quarto domingo
depois de Pentecostes, fui à igreja para ali fazer minhas orações
durante a ligurgia. Estava sendo lida a primeira Epístola de S. Paulo
aos Tessalonicenses e, entre outras palavras, ouvi estas: ‘Orai
incessantemente’ (1Ts 5,17). Foi esse texto, mais que qualquer outro,
que se inculcou em minha mente, e comecei a pensar como seria possível
rezar incessantemente, já que um homem tem de se preocupar também com
outras coisas a fim de ganhar a vida”.
O camponês foi de igreja em igreja, para
ouvir sermões, mas não encontrou a resposta que queria. Finalmente,
encontrou um santo staretz que lhe disse:
“A oração interior incessante é um
anseio contínuo do espírito humano por Deus. Para sermos bem-sucedidos
nesse exercício consolador, precisamos suplicar com mais frequência a
Deus que nos ensine a rezar sem cessar. Rezar mais e rezar com mais
fervor. É a própria oração que lhe revela como rezá-la sem cessar; mas
leva algum tempo”.
Então, o santo staretz ensinou ao
camponês a Oração de Jesus: “Senhor Jesus Cristo, tem misericórdia de
mim”. Enquanto viajava como peregrino pela Rússia, o camponês passou a
repetir essa oração com os lábios. Até considerava a oração de Jesus sua
companheira verdadeira. E, então, um dia, teve a sensação de que a
oração passou sozinha de seus lábios para seu coração. Ele diz:
“… parecia que, pulsando normalmente,
meu coração começava a dizer as palavras da oração a cada batida…
Desisti de dizer a oração com os lábios. Passei simplesmente a ouvir o
que meu coração dizia”.
Aqui aprendemos outro jeito de chegar à
oração incessante. A oração continua a rezar dentro de mim, até enquanto
falo com os outros ou me concentro no trabalho manual. Ela se torna a
presença ativa do Espírito de Deus que me guia pela vida.
Desse modo vemos como, pela caridade e
pela atividade da oração de Jesus em nosso coração, nosso dia todo se
transforma em oração contínua. Não sugiro que imitemos o peregrino
russo, mas que, também nós, em nosso ministério atarefado, nos
preocupemos em rezar sem cessar, para que, seja o que for que comamos ou
bebamos, seja o que for que façamos o façamos pela glória de Deus.
(Veja 1Cor 10,31). Amar e trabalhar pela glória de Deus não pode
permanecer uma ideia sobre a qual pensamos de vez em quando. Deve se
tornar uma incessante doxologia interior.
INCLUI TUDO
Uma última característica da oração do
coração é que ela inclui todos os nossos interesses. Quando entramos com
a mente no coração e ali ficamos na presença de Deus, então todas as
nossa preocupações mentais se transformam em oração. O poder da oração
do coração é precisamente que, por meio dela, tudo que está em nossa
mente se transforma em oração.
Quando dizemos a alguém: “Vou rezar por
você”, assumimos um compromisso muito importante. É uma pena que esse
comentário muitas vezes não passe de uma expressão de interesse. Mas,
quando aprendemos a descer com nossa mente em nosso coração, todos os
que fazem parte de nossa vida são guiados à presença curativa de Deus e
tocados por ele no centro de nosso ser. Falamos aqui de um mistério para
o qual palavras são inadequadas. É o mistério em que o coração, centro
de nosso ser, é transformado por Deus em seu coração, um coração grande o
bastante para abraçar todo o universo. pela oração, carregamos em nosso
coração toda a dor e tristeza humanas, todos os conflitos agonias, toda
a tortura e a guerra, toda a fome, solidão e miséria, não por causa de
alguma grande capacidade psicológica ou emocional, mas porque o coração
de Deus uniu-se ao nosso.
Aqui vislumbramos o sentido das palavras de Jesus:
“Tomai sobre vós o meu jugo e sede
discípulos meus, porque eu sou manso e humilde de coração, e
encontrareis descanso para vossas almas. Sim, o meu jugo é fácil de
carregar, e o meu fardo é leve” (Mt 11,29-30).
Jesus nos convida a aceitar seu fardo,
que é o do mundo todo, um fardo que inclui o sofrimento humano em todos
os tempos e lugares. Mas esse fardo divino é leve e podemos carregá-lo
quando nosso coração se transforma no coração manso e humilde de nosso
Senhor.
Vemos aqui o íntimo relacionamento entre
oração e ministério. A disciplina de conduzir todo o nosso povo com
suas lutas ao coração manso e humilde de Deus é a disciplina de oração e
também do ministério. Enquanto o ministério significar apenas que nos
preocupamos muito com as pessoas e seus problemas; enquanto significar
um número interminável de atividades que dificilmente conseguimos
coordenar, ainda dependeremos muito de nosso coração tacanho e ansioso.
Mas quando nossas preocupações são elevadas ao coração de Deus e ali se
transformam em oração, ministério e oração se tornam duas manifestações
do mesmo amor universal de Deus.
Vimos como a oração do coração se nutre
de orações breves, é incessante e inclui tudo. Essas três
características mostram como a oração do coração é o alento da vida
espiritual e de todo o ministério. Na verdade, essa oração não é apenas
uma atividade importante, mas o próprio centro da nova vida que queremos
representar e na qual queremos iniciar nosso povo. As características
da oração do coração deixam claro que ela exige uma disciplina pessoal.
Para levar uma vida de oração não podemos passar sem orações
específicas. Precisamos dizê-las de uma forma que nos ajude a ouvir
melhor o Espírito que reza em nós. Precisamos continuar a incluir em
nossa oração todas as pessoas com as quais e para as quais vivemos e
trabalhamos. Essa disciplina vai nos ajudar a passar de um ministério
entontecedor, fragmentário e muitas vezes frustrante para um ministério
integrador, holístico e muito gratificante. Ela não vai facilitar o
ministério, mas simplificá-lo; não vai torná-lo doce e piedoso, mas sim
espiritual; não vai fazê-lo indolor e sem lutas, mas tranquilo no
verdadeiro sentido hesicástico.”
Capítulo extraído do livro “A Espiritualidade do Deserto e o Ministério Contemporâneo
(por Henri Nouwen)
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