
Vivemos no mundo, mas sem seguir suas orientações
Em um mundo dessacralizado, distante da prática religiosa, percebe-se  a influência dos tempos litúrgicos. Embora deformados, o Natal, a  Páscoa e outras festividades têm ressonância no ambiente humano. Ainda  que seja débil sua repercussão na consciência dos indivíduos, devem ser  utilizadas em favor dos objetivos de evangelização, que é levar aos  homens a Mensagem de Cristo. 
 
As semanas que antecedem as comemorações da Morte e Ressurreição  do Salvador, denominadas TEMPO QUARESMAL, nos proporcionam ricos ensinamentos, farta e bela  semeadura, capaz de, uma vez aproveitada, produzir abundantes frutos  espirituais. 
 
Recordam outra “quaresma”, os quarenta dias de Jesus no deserto,  preparando-se para sua missão salvífica. Ensina-nos o evangelista Marcos  (1, 12-13): “E logo o Espírito o impeliu para o deserto. E ele  esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás e vivia entre  as feras e os anjos o serviam”. E Lucas (4, 1-13) completa a  descrição mostrando a vitória de Jesus sobre as tentações. Esse fato é  revivido pela Igreja a cada ano e isso ocorre, entre outros motivos,  pela sua própria natureza. Diz o Vaticano II em “Lumen Gentium” nº8: “A  Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa  e sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e  a renovação”. Queremos uma Igreja sem mancha nem rugas, embora  composta de homens. Isso somente será possível através de uma verdadeira  conversão. Exatamente é este o alvo do tempo litúrgico da quaresma. 
 
São seis semanas de preparação para a Páscoa. Ela une  profundamente cristãos e judeus. A mesma Sagrada Escritura serve de  elemento constitutivo para uns e outros. A diferença é que nós  celebramos o que já aconteceu – a vinda do Messias esperado – e vivemos  na esperança da vida definitiva no paraíso; os israelitas, na  expectativa do Salvador prometido ou o Reino de Deus. 
 
Uma eficaz e condigna celebração da Páscoa se obtém, sobretudo,  pela lembrança das exigências do Batismo, a frequência em ouvir a  Palavra de Deus, a oração, o jejum e a esmola. A penitência é uma  característica desta época. Lamentavelmente, hoje em dia, os cristãos,  arrefecidos em sua Fé, esquecem-se desses compromissos. 
 
O Concílio Ecumênico, na Constituição “Sacrosanctum Concilium”,  adverte: “A penitência no tempo quaresmal não seja somente interna e  individual, mas também externa e social” (nº110). São recomendados  também “os exercícios espirituais, as liturgias penitenciais, as  peregrinações em sinal de penitência, as privações voluntárias, como o  jejum e a esmola, a partilha fraterna (obras caritativas e  missionárias)” (Catecismo da Igreja Católica, nº1438). 
 
Esse quadro nos indica o caminho da perfeição, que passa pela  Cruz. E lembra o dever da santidade, que, para ser cumprido, exige o  esforço. Em consequência, a ascese e a mortificação, fazem parte do  plano de Deus a respeito de seus filhos. 
 
O quinto mandamento da Igreja prescreve o jejum e a abstinência.  Eles são um meio de dominar os instintos e adquirir a liberdade de  coração. Estão presentes também no Código de Direito Canônico (cc 1249 a  1253). O primeiro começa: “Todos os fiéis, cada qual a seu modo,  estão obrigados pela lei divina a fazer penitência”. E no seguinte: “Os  dias e tempos penitenciais em toda a Igreja são todas as sextas-feiras  do ano e o tempo da Quaresma”. No Brasil, a abstinência das  sextas-feiras – exceto na Semana Santa – pode ser comutada por “outras  formas de penitência, principalmente obras de caridade e exercícios de  piedade”. 
 

Este período do ano litúrgico coloca diante de nossos olhos, como  imperativo da vida cristã, a conversão – através da penitência. Ora,  nós respiramos uma atmosfera visceralmente contrária. Tudo em torno de  nós sugere o prazer sem limites, isento de compromisso, um comportamento  à margem das exigências oriundas das determinações do Evangelho. Essa  maneira de ser penetrou os umbrais sagrados. Assim, pouco se fala do  pecado, dos deveres que são substituídos por direitos sem barreiras, de  um Cristo despojado de seus ensinamentos, que constrangem a sede  ilimitada de liberdade sem peias. 
 
Esta época litúrgica tem muita semelhança com o apelo dos  profetas à conversão, e esta, a partir do coração. Tanto é assim que  usamos os textos do Antigo Testamento na escuta da Palavra de Deus,  dirigida a cada um dos fiéis em nossos dias. 
 
O apelo de Pedro deve repercutir em nossos ouvidos: “Salvai-vos,  dizia ele, dessa geração perversa” (Atos 2,40). Vivemos no mundo,  mas sem seguir suas orientações. O cristão será sempre alguém que “rema  contra a corrente”. Quando encontramos um pregador ou um agente  pastoral que teme ensinar a mesma Doutrina de Jesus Cristo ou prefere  amenizá-la para não afastar os fiéis, sabemos que não são verdadeiros  pastores. 
 
A Quaresma é um tempo propício à reflexão cristã, a uma conversão  do coração, a uma prática de penitência, tão distanciada de uma  mentalidade moderna à margem do Evangelho, mas que penetrou até nas  fileiras dos seguidores de Cristo. 
 
Vivendo os ensinamentos da Igreja neste tempo litúrgico, nos  dispomos a receber as graças da Páscoa da Ressurreição. 
 
 

Dom Eugênio Sales
Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro